O mundo do patriarcado não é apenas uma construção cultural. É um sistema estruturante de violência. Uma filosofia que atravessa séculos, geografias e subjetividades, moldando um ideal masculino violento, hierárquico, controlador. No Sul global, essa lógica ganha contornos ainda mais perversos: aqui, a masculinidade foi forjada nas fornalhas do colonialismo. E isso não é metáfora. O colonialismo é um processo desumanizador que animalizou, inferiorizou e destruiu culturas, corpos e afetos. E ainda nos molda.
Essa estrutura está entranhada em nosso inconsciente coletivo. Ela permeia a educação, a criação, a constituição de sujeitos. Define quem pode ser homem e quem não pode. Quando se é homem e quando se deixa de ser. Como deve ser um homem. Mas afinal, quem detém o direito de definir isso?
Desde cedo, homens são enquadrados em uma formatação sistêmica que os adoece. Homens cis, trans, ou ainda sujeitos não-binários. Todos, em algum momento, são atingidos pela violência simbólica e estrutural do masculino hegemônico. Uma masculinidade que, ao ser normatizada, violenta a si mesma e a todos ao redor.
Lembro do verso da canção “Avesso”, de Jorge Vercillo, que também me inspirou a escrever um capítulo de livro sobre diversidade sexual, resistência e arte: “A idade média é aqui”. E é mesmo. Estamos em pleno século XXI, mas presos a um obscurantismo secular. Muitos homens tentam “aprender” a ser homens, mas o que estão realmente aprendendo? Estão sendo conduzidos por outros homens que acreditam saber qual é o modelo certo. Recuperar a masculinidade a partir de uma visão religiosa, cristã, punitiva e conservadora é, muitas vezes, reensinar a violência. Uma violência que oprime quem não se enquadra.
Aprender a respeitar a mulher como esposa não deveria ser ensinado, pois este deveria ser um princípio universal. Enfim, respeitar a todas as mulheres e meninas. Em alguns eventos, homens se juntam para comer carne vermelha como rito de passagem tribal vestindo roupas escuras, fumando charutos, ostentando barbas volumosas. Outros se aventuram em retiros onde a dor física se converte em demonstração de força. Tudo isso como se fossem rituais iniciáticos modernos, selando uma nova masculinidade “curada” — desde que ela siga o script. Nestes encontros, a rigidez é a regra: nada de sensibilidade, nada de subjetividade, nada de afeto, ainda que se permita emocionar e até chorar como numa catarse transformadora para encontrar este homem interior perdido.
Permitir-se ser humilhado por outros homens para provar que é homem. Homem que é homem tem que aguentar porrada. Subir montes. Dormir pouco. Se sujar na selva. Privar-se do conforto como forma de purificação. A masculinidade, nesses moldes, é performance. É sacrifício. É dor como redenção.
Um reflexo narcísico do eu colonizador que segrega, inclusive, em bases financeiras, pois, para investir na retomada deste padrão performático de ser homem, é preciso dispor de muito dinheiro, um privilégio para poucos. E diga-se de passagem: não há registros de homens negros ou indígenas nesse circuito. A masculinidade hegemônica, afinal, continua sendo branca, rica e eurocentrada. Midiática.
Quantas feridas esses homens carregam? Quantas ausências, silêncios e traumas estão mascarados por essa capa de força? Talvez fosse mais saudável buscar psicoterapia, psicanálise, meditação ou caminhos para uma espiritualidade saudável. No entanto, estes são processos que, segundo esta normatividade, diminui a masculinidade do homem. Mas, para muitos, o autoconhecimento é mais doloroso que se embrenhar na mata. Olhar para dentro exige coragem, muito mais do que se deixar guiar por outros homens que também estão perdidos.
Esses comportamentos, hoje, são amplamente compartilhados nas redes sociais. Tornaram-se influências diretas para adolescentes e jovens adultos. A machosfera. E a juventude masculina atual, com acesso irrestrito à internet, é facilmente cooptada por discursos red pill, incel, MGTOW. A misoginia, o racismo e a LGBTfobia são propagados em fóruns, vídeos, influencers. Uma pedagogia do ódio que se inicia na adolescência e ecoa pela vida adulta.
E não é coincidência que os crimes sexuais, o consumo de pornografia ilegal e a exploração de meninas e mulheres estejam crescendo em círculos antes considerados “normais”. A indústria da pedofilia, do tráfico humano, do abuso psicológico e físico tem homens como seus maiores operadores. Homens criados sem afeto, sem escuta, sem espelho emocional. Homens que foram violentados nas suas subjetividades pueris e se tornaram violentos.
Essa violência destrói infâncias. Marca adolescências. Contamina a vida adulta. Adoece a psique. Transtornos mentais, depressão, ansiedade, psicopatologias graves, tudo isso é a herança do homem moldado à força. E as estatísticas não nos deixam mentir.
É preciso repensar o que é ser homem. Compreender que existem múltiplas formas de ser e existir. Que ser homem não é uma essência, mas uma construção, e que todas as construções são atravessadas por raça, classe, gênero, religião, sexualidade. Formatar um modelo único de homem é reproduzir o colonialismo mental que já fez vítimas demais.
Regular a internet não é censura. É cuidado coletivo. Precisamos responsabilizar as plataformas, denunciar discursos de ódio, criar políticas públicas que eduquem e protejam. O espaço digital molda subjetividades e não podemos mais deixar essa tarefa nas mãos de algoritmos e influencers sem ética.
Vivemos a era dos filtros, mas também da ausência de filtros morais. Todo mundo quer ser alguém, mas esse “alguém” é uma persona plastificada e performática numa estética comercial. Todos querem visibilidade, influência, status. Mas poucos sabem quem realmente são.
Parto do título da canção de Jorge Vercillo, “Avesso”, para desenvolver este texto. A mesma canção que me inspirou a escrever o capítulo de um livro sobre diversidade sexual, resistência e arte. Talvez o que muitos homens estejam precisando, para ser homens melhores, é mergulhar mais na produção de arte como produção de si mesmos. Ser homem pode ser mais sobre criar do que dominar. Sobre sentir do que performar. Sobre amar e deixar-se amar.
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