E mais um ano se inicia. Muitos somos levados pelo costume de fazer planos para o fim de ano, com a expectativa de que a virada traga novidades, que as coisas sejam diferentes no ano novo. É como acreditar que, assim como apertamos um interruptor e a luz se acende (ou se apaga), tudo muda com o desejo (e a ansiedade) da instantaneidade. Claro que esperamos que mude para melhor. Mas... melhor o quê?
Vivemos numa contagem regressiva constante em diversos pontos de nossas vidas, mesmo que de forma inconsciente. Celebrar a virada do ano nos leva a uma contagem regressiva que alcança diferentes camadas. Seja pela festa em si, seja pelo alívio que a virada do ano pode trazer. “Ufa! Agora é ano novo. Tudo vai ser diferente!”.
Esta expectativa para que o ano termine logo, na esperança de que o novo traga tudo aquilo que não conseguimos realizar no ano que passou é, muitas vezes, torturante e pode se tornar nova fonte de frustração ao longo do novo ano. Você lembra da sua lista de promessas de ano novo? Para quem enfrentou momentos difíceis pode ser uma válvula de escape. Muitas pessoas dizem que o ano foi difícil, mas qual ano não é? Será que normalizamos a ideia de priorizar as dificuldades, as tormentas da vida? Por que lembramos mais das coisas ruins? Por que nos agarramos tanto às dores?
Algumas pessoas acreditam que um ano é igual ao outro, que é apenas mais um ano. Que o primeiro dia do ano novo é apenas mais um dia. O que será que esconde este pensamento? Mas a virada... ah, a virada! Ela tem sua magia – pessoal, individual e intransferível. Cada um vive suas experiências e expectativas de acordo com seus olhares. Porém, o mais interessante disso tudo é que o peso do começo é muito maior. Chegamos ao dia 2 ou 3 de janeiro e já estamos imersos na normalidade do cotidiano, o que nos faz pensar que tudo é igual, e a magia da virada foi apenas um momento fugaz, alimentado pela queima de fogos, pelas bebidas, pelas ceias, pelas sete ondas puladas, pelas cores das roupas ou outras superstições e misticismos.
Sim, a virada é mágica, no sentido literal, folclórico, imagético. E devemos nos permitir pensar nisso. Sentir essa energia. Renovar as esperanças de que tudo será diferente, será melhor. “Vivemos esperando por dias melhores”, cantou Jota Quest. Encher o peito e gritar: “Eu vou ser feliz este ano!” é um dever que devemos nos permitir não só na virada do ano, mas na virada de cada dia de nossas vidas. É um privilégio poder proclamar um (re)começo – um começar de novo e confiar na beleza da potência de simplesmente ser. Libertar-se de amarras, romper as barreiras invisíveis dos casulos que criamos ao nosso redor e assim nos movimentarmos. Vida é movimento, como numa música, independentemente de dançarmos ou não. Cuidar de nossa mente para que não nos aprisionemos de novo. Com afeto. Cuidar de nós mesmos e nos permitir ser cuidados.
Foi a partir da canção de Ivan Lins que me veio a ideia para este meu primeiro texto no Folha do Café. Já que estamos no início de um novo ano, e eu estreando como colunista, falar de novos começos é essencial.
“Começar de novo e contar comigo” – esse primeiro verso de Começar de novo deixa claro que o compromisso assumido comigo mesmo é o principal combustível para que meus próximos 300 e tantos dias sejam marcados por energia, emoção e afeto. A crença em mim mesmo, de que posso realizar o que me faz feliz – como escrever e alcançar tantas pessoas, provocando reflexões – tem um poder transformador.
Eu, assim como você, também enfrento desafios cotidianos: saúde, trabalho, estudos, família, amigos, romances, inflação, política, (in)segurança pública... 2024 foi o ano em que completei 50 anos. Meio século de vida. Para muitos, é assustador. A ideia de “ser velho” é pesada para algumas pessoas. Mas eu prefiro celebrar minhas bodas de ouro com a vida. Prefiro continuar com planos: voltar a fazer dança de salão, ir a mais shows, viajar mais, vencer meu medo e mergulhar nas águas de Arraial do Cabo e Ilha Grande. Viver! Este é um compromisso que renovo comigo mesmo. Começo de novo e conto comigo.
“Vai valer a pena ter amanhecido.” Ivan Lins acerta ao nos lembrar o quanto é valioso acordar. Mas acordar para a vida. Esse acordar nos faz, literalmente, despertar. Não é só um novo dia – é uma oportunidade de recomeçar, reorganizar nosso mosaico interno.
A canção fala de dores após um relacionamento tóxico, mas quantas vezes não somos tóxicos conosco? Nós mesmos podemos ser nossos próprios algozes. Sim, precisamos estabelecer limites – e eles começam em nós mesmos. O que, de quem, como, quanto e até quando suportar? Somos nós que decidimos. É preciso respeitar nossos limites. E dos outros também. Reconhecer quais são os bons vínculos que cultivamos em nossas vidas e alimentá-los.
“Ter-me rebelado. Ter-me debatido. Ter-me machucado. Ter sobrevivido.” Estes são versos que falam da nossa gigantesca capacidade de luta e superação, e não da permanência em nossas zonas de conforto, mas da impermanência das coisas, da volatilidade da vida que nos cobra coragem e mudanças de atitudes. Sem pressa, sem pressão.
Reconhecer nossas vulnerabilidades é um ato de coragem. Não se trata de diferenças de gerações, embora isto faça alguma diferença sim, mas de atitudes diante da vida. Muitas vezes, mudar significa dizer adeus a pessoas, situações ou lugares que não cabem mais em quem nos tornamos. É parte do processo de construir diálogos internos que nos ajudem a nos entender melhor e a encontrar os afetos que dão sentido à nossa existência. Precisamos aprender a cultivar espaços onde possamos expressas nossos sentires de forma mais real. Sem medo, sem restrições. Valorizar e respeitar nossos afetos.
“Ter virado a mesa. Ter-me conhecido. Ter virado o barco. Ter-me socorrido.” Dentre as mudanças de atitude que a vida nos pede, uma delas, e talvez uma das mais importantes, é nos abraçarmos, nos acolhermos, nos priorizarmos. Egoismo, egocentrismo, narcisismo, chame do que quiser. Prefiro autocuidado, autoamor. E neste instante me lembro de Pedro Bial com sua “Use filtro solar”. Considero: faça terapia!
Recomeçar não é apagar o passado, mas reorganizar as peças do mosaico que somos. Que o réveillon não tenha sido apenas um evento que marca a virada numérica de ano, mas uma virada em sua vida. Que você possa celebrar muito, porque eu, certamente, tenho muito a celebrar.
Deixo com vocês a primeira estrofe completa da belíssima canção Começar de novo, de Ivan Lins:
“Começar de novo e contar comigo.
Vai valer a pena ter amanhecido.
Ter-me rebelado. Ter-me debatido.
Ter-me machucado. Ter sobrevivido.
Ter virado a mesa. Ter-me conhecido.
Ter virado o barco. Ter-me socorrido.”
Que possamos, todos nós, construir nossos mosaicos com coragem e afeto e começar de novo, um dia de cada vez. E assim como cantou Jota Quest, que vivamos “Dias que não deixaremos para trás”.
Julio Cesar Rodrigues
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