O que acontece quando os afetos são silenciados? Quando a solidão não encontra escuta e a raiva se torna refúgio? Adolescence, minissérie da Netflix, nos coloca diante de um espelho incômodo: somos uma sociedade que falha em cuidar de seus jovens e, em consequência, os entrega à radicalização, ao ódio e à violência. Não há nada de ficção na sua trama: há um retrato de uma geração que cresce no abandono emocional, refém de uma cultura digital que molda comportamentos sem oferecer acolhimento.
A minissérie expõe a ascensão das comunidades como a INCEL (celibatários involuntários), onde homens se unem pela frustração e pelo ressentimento diante das mulheres. O problema, no entanto, não é a solidão em si, mas o que se constrói a partir dela: um espaço que transforma a dor em justificativa para o ódio. A ausência de afetos e a dificuldade de elaboração das próprias emoções não são fenômenos novos, mas a maneira como são canalizados hoje amplifica suas consequências. Além de INCEL, MGTOW (Men Going Their On Way) e Red Pills são movimentos sociais contemporâneos que ditam padrões de comportamento de homens estruturados no rechaço contra as representações do feminino.
O conceito de masculinidade, tal como historicamente consolidado, não permite fraqueza. Ser homem, nessa lógica, significa engolir o choro, suportar a rejeição sem demonstrar dor e, principalmente, não demonstrar vulnerabilidade. A violência, então, se torna uma resposta possível. Incapazes de lidar com a frustração, esses homens passam a culpabilizar o outro—geralmente mulheres e outros grupos minorizados—por aquilo que sentem. Quando não há um espaço de acolhimento, as sombras encontram morada em discursos de vingança, destruição e dominação. A violência se torna justificável diante de seus medos, inseguranças e frustrações.
Vivemos um tempo em que a internet não apenas reflete o mundo, mas o reorganiza. O consumo de conteúdo na era das redes sociais cria bolhas ideológicas onde a repetição substitui a reflexão. Algoritmos não são neutros: eles alimentam aquilo que mantêm os usuários engajados. E poucas coisas prendem tanto a atenção quanto a raiva, que segue sendo alimentada por influenciadores numa apologia do sucesso com fórmulas mágicas que prometem prosperidade encenada nas redes sociais. Estes influenciadores digitais acabam por se tornar grandes referências na construção das subjetividades especialmente de jovens e adolescentes carentes de referências sólidas.
Na minissérie, vemos o impacto desse fenômeno em tempo real. Jovens solitários encontram em fóruns anônimos não apenas um espaço de expressão, mas uma pedagogia do ressentimento. Ali, cada experiência de rejeição individual é transformada em teoria conspiratória sobre a sociedade. E assim, o que começou como um sentimento pessoal de inadequação se converte em discursos de ódio organizados, que se retroalimentam sem contestação. Ainda que a família de Jamie, o personagem principal, seja aparentemente bem estruturada e não haja sinais de violência ou ainda problemas financeiros, qualquer indicador de vulnerabilidade socioemocional, o livre consumo de signos e símbolos dispostos na internet e especialmente nas redes sociais, no isolamento do quarto adolescente, e na comunhão com seus pares, proporciona o cenário ideal para a alimentação de valores e comportamentos destrutivos.
A questão que fica é: estamos educando as novas gerações para lidarem com a tecnologia, ou estamos permitindo que a tecnologia as eduque sem mediação? Em um mundo onde os adolescentes passam mais tempo online do que interagindo presencialmente, quem está ensinando a eles sobre afeto, responsabilidade emocional e empatia? Smartphones se tornaram a babá mais comum nas vidas das crianças na atualidade. Tornaram-se também a melhor companhia de muitas pessoas. Horas e horas são gastas na imersão digital de conteúdos diversos que, agora, já não contam mais com filtros de bloqueio para certos elementos que funcionam como incentivo a discursos e ações de ódio.
Hoje, o que se percebe é que o abismo entre gerações nunca foi tão profundo. Pais não entendem o mundo digital de seus filhos. Pais não entendem seus filhos. Pais talvez nem mesmo se entendam. Professores, formados em outra lógica, lutam para manter a atenção de estudantes acostumados ao imediatismo dos feeds e à velocidade de vídeos de curtíssima duração. E, enquanto isso, o sistema educacional insiste em um modelo que já não alcança essa juventude. Paramos no tempo?
A minissérie escancara essa lacuna. Não há diálogo intergeracional: há medo, isolamento distanciamento, desconhecimento e silêncio. Os adultos se perguntam onde erraram, mas poucos realmente tentam compreender a linguagem e as dores dessa geração. O problema não está apenas na ausência de disciplina ou na permissividade, como discursos mais conservadores tentam apontar. Está na falta de espaços de acolhimento, na escassez de conversas verdadeiras sobre o que significa crescer em um mundo onde tudo parece acessível, mas nada parece suficiente.
A intolerância não nasce pronta: ela é construída. O discurso de ódio se nutre da falta de pertencimento, do isolamento, do medo do outro. Mas a grande tragédia de Adolescence é que nos faz perceber que o ódio não é só um problema individual, mas estrutural.
A forma como a sociedade responde à violência também revela suas contradições. Quando um jovem branco de classe média comete um crime brutal, o discurso predominante é o de que ele “precisa de ajuda”. Quando o infrator é negro e periférico, a resposta é sempre punitivista. Se o ódio é ensinado, porque as soluções seguem sendo a repressão e o encarceramento ao invés da prevenção e da escuta?
A Psicanálise nos ensina que o sujeito se constitui pelo olhar e pelo afeto do outro. Mas o que acontece quando esse olhar é de indiferença? Quando a única resposta oferecida ao sofrimento é o abandono?
Adolescence nos obriga a encarar nossas falhas enquanto sociedade. Somos todos responsáveis pelo mundo que estamos construindo, pela ausência de acolhimento que permitimos se alastrar. Deixo aqui uma pergunta que vem ecoando após o final da minissérie. Uma pergunta bastante dolorosa, mas necessária: ainda há tempo para ensinarmos essa geração que o amor é mais forte que o vazio? Mas é preciso insistir em outra pergunta: o que nós entendemos de amor e o que fazemos com nossos afetos para que estas gerações mais novas estejam como estão? Não podemos culpabilizar a geração mais nova por seus atos, mas precisamos avaliar nossos comportamentos e o que estamos fazendo na construção deste mundo pois nós todos fazemos parte dele.

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